Enquanto países desenvolvidos como Alemanha, Canadá e Japão levam
saneamento básico a mais de 99% de suas populações, o Brasil ainda vê a
universalização dos serviços de água e esgoto até 2033 em um horizonte
distante. Com a pandemia, o coronavírus coloca ainda mais em risco a
vida de quase 128 milhões de brasileiros que não têm os resíduos
coletados ou vivem sem água encanada – retrato de um país em que se
prevenir da covid-19 e lavar as mãos, por exemplo, é um privilégio.
O passo para que enfim esse setor da infraestrutura nacional deixe
para trás anos de defasagem está prestes a ser dado no Senado, com a
votação do novo marco legal do saneamento (PL 4.162/2019).
Segundo a pesquisadora do Centro de Estudos em Regulação e
Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV/CERI) Juliana Smirdele,
atualizar a legislação é necessário porque os recursos públicos
investidos nas últimas décadas foram insuficientes e não acompanharam o
aumento da população brasileira.
“A título de comparação, em 2008, de acordo com dados do MDR
[Ministério do Desenvolvimento Regional], 94,7% da população urbana do
país tinha acesso à rede de água. Já em 2018, dez anos depois, esse
valor chegou a 92,8%. Isso é uma evidência de que os esforços empenhados
para expandir essa infraestrutura não foram suficientes para fazer
frente ao crescimento populacional”, analisa.
O PL 4.162/2019 é considerado pelo presidente do Senado, Davi
Alcolumbre, pauta prioritária em 2020. O texto pode ser votado ainda em
junho, como revelou o relator, senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE),
em evento on-line promovido pelo Jota nesta segunda-feira (1°).
Para explicar o que prevê o marco do saneamento e seus reais
impactos, listamos abaixo os principais mitos e consultamos três
especialistas que são referência em saneamento básico para que você
fique por dentro do assunto.
Água será privatizada?
Um dos maiores mitos em torno do novo marco legal é o que o valor das
tarifas pode subir com a delegação dos serviços de saneamento à
iniciativa privada, em um processo de “privatização da água”. O advogado
da área de infraestrutura e sócio do escritório Lobo de Rizzo, Rodnei
Iazzetta, esclarece que essa informação é falsa e aponta que a tendência
é que ocorra justamente o contrário.
“A água não pode ser privatizada, é um bem público. A privatização é
uma venda. Pegamos um exemplo da década de 1990, quando a Embraer foi
privatizada. Você vende a empresa, com CNPJ e tudo. Como a água é um bem
público, não é possível vender a água, o que eu estou fazendo é
concedendo, por um prazo determinado, a prestação daquele serviço. No
caso, a maneira com que a população será abastecida com aquela água”,
compara.
Segundo o especialista, a abertura do mercado proporciona
competitividade ao setor. Seguindo a lógica de que haverá avanços em
infraestrutura e cobertura dos serviços de saneamento com a entrada de
investimentos privados, o consumidor final pode pagar menos por isso e
ter acesso a melhores serviços.
“O que se propõe é apenas a delegação para que uma empresa possa
explorar um serviço público. Vale lembrar que os municípios e estados
continuam sendo donos daquele serviço. O que acontece é que a iniciativa
privada é contratada, por um prazo, a exercer essa função sob
condições. E a empresa perde essa concessão se as regras não forem
cumpridas”, pontua Iazzetta.
O governo não poderá mais oferecer a Tarifa Social?
Há quem diga que a aprovação do novo marco regulatório representa o fim da Tarifa Social, benefício que dá descontos à população de baixa renda, desempregados e moradores de habitações coletivas nas contas de água e esgoto. Isso não tem fundamento porque essas condições especiais de pagamento, que preservam o direito ao acesso aos serviços, estão previstas na Lei Federal 11.445, de 2007. (hiperlink: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm). Essa determinação federal é justificada pela relação direta do saneamento básico com a manutenção da vida humana e deve ser respeitada por todas as empresas prestadoras, sejam públicas ou privadas. Logo, esse mecanismo social não será afetado, muito menos extinto.
Há quem diga que a aprovação do novo marco regulatório representa o fim da Tarifa Social, benefício que dá descontos à população de baixa renda, desempregados e moradores de habitações coletivas nas contas de água e esgoto. Isso não tem fundamento porque essas condições especiais de pagamento, que preservam o direito ao acesso aos serviços, estão previstas na Lei Federal 11.445, de 2007. (hiperlink: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm). Essa determinação federal é justificada pela relação direta do saneamento básico com a manutenção da vida humana e deve ser respeitada por todas as empresas prestadoras, sejam públicas ou privadas. Logo, esse mecanismo social não será afetado, muito menos extinto.
O presidente do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos, enfatiza que a
Tarifa Social não só continuará valendo como será fortalecida por meio
das normas de referência de regulação tarifária que estabelecem os
mecanismos de subsídios para quem não têm possibilidade de arcar com o
valor integral.
“Essa tarifa mais em conta continua porque é uma questão social. Essa
prática nunca mais cai. É uma forma de todos terem acesso à água e, ao
mesmo tempo, de a empresa receber. Se há um lugar que não recebe água,
como uma favela, por exemplo, o pessoal acaba puxando um ‘gato’ da rede
oficial e a empresa cede a água sem receber nada por isso”,
exemplifica.
“A Tarifa Social é uma maneira de a empresa operadora entregar uma
água segura, para que o cidadão tenha uma conta, o que lhe permite ter
esse documento para abrir um crediário, por exemplo, e de a empresa
receber um pouco por aquela água que foi consumida. Essa tarifa
diferenciada é importante para o cidadão e para a empresa operadora. O
marco regulatório não mexe em nada disso”, garante Édison Carlos.
Atualmente, cada estado estabelece a própria regra de Tarifa Social,
mas geralmente ela é aplicada a famílias com renda mensal de até três
salários mínimos e em domicílios em que a mulher exerce o papel de chefe
de família. Para usufruir do benefício em São Paulo, por exemplo, o
cidadão deve comprovar à Sabesp, a cada dois anos, que possui renda
familiar de até três salários mínimos; que mora em habitação subnormal
com área útil de até 60 m²; que consome até 170 kWh mensais de energia e
15 metros cúbicos de água; que não há débitos para o imóvel; e que, no
caso de desempregados, a demissão não tenha ocorrido por justa causa.
Até o fim de junho, os paulistanos que se enquadrem nos critérios e
tenham entrado com pedido de inclusão na Tarifa Social Residencial a
partir de 20 de março serão beneficiados com o valor reduzido na conta
de água: R$ 8,88 para consumo de até 10 metros cúbicos de água, o que
equivalente a 10 mil litros por mês.
Segundo Édison Carlos, a empresa que pratica a Tarifa Social tende a
evitar o desperdício de água, especialmente em áreas que têm ligações
clandestinas.
“É muito comum observar naquela área irregular, em uma favela, por
exemplo, o nível de consumo muito alto porque as pessoas não pagavam a
conta. Quando paga a conta, mesmo que seja pouco, ela recebe informação
da importância de usar a água corretamente, de utilizar a água potável
para o que realmente é necessário, como fazer comida, tomar banho e
beber. Tudo isso é uma conscientização que chega junto com o
estabelecimento da Tarifa Social”, conclui o presidente da Trata Brasil.
Privatizar é obrigatório?
Outro trecho que causa confusão e debate é o que supostamente
tornaria obrigatória a concessão dos serviços locais à iniciativa
privada, enfraquecendo as companhias públicas, caso o PL 4.162 seja
aprovado. Para interpretar de forma correta o que está previsto na nova
legislação é preciso entender antes como ocorre a prestação de água e
esgoto e quem é responsável por isso.
O artigo 30 da Constituição Federal deixa claro que o município é a
quem cabe “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão
ou permissão, os serviços públicos de interesse local”, como no caso do
saneamento. Se uma gestão municipal, com seus próprios esforços, não
puder atender à população, pode delegar os serviços a uma empresa
privada, por meio de processo licitatório, ou deixá-los a cargo de uma
companhia pública estadual. Nesse último caso, os chamados contratos de
programa, a maioria no país, não exigem licitação.
Com isso, companhias estaduais de saneamento e empresas privadas têm
hoje um tratamento que não as coloca em pé de igualdade, disparidade
histórica que o novo marco regulatório corrige por meio do princípio da
concorrência. Isso quer dizer que qualquer empresa, seja pública ou
privada, pode prestar os serviços de saneamento, desde que apresente a
melhor proposta e ateste que possui capacidade econômico-financeira para
cumprir as metas e investimentos estabelecidos em contrato.
“Agora, o município que quiser delegar os serviços precisará abrir um
processo licitatório e poderão concorrer tanto empresas privadas quanto
companhias estaduais de saneamento”, ressalta Juliana Smirdele. “Isso
traz para o setor o aumento da competitividade e, com ela, é mais fácil
chegar ao objetivo da universalização. Se o edital for bem desenhado,
com metas claras, com previsão de penalidades e, claro, com a atuação do
regulador durante esse contrato, incentiva com que haja essa expansão
dos serviços de saneamento”, completa.
A especialista da FGV/CERI é taxativa ao reiterar que estatais que já
prestam serviço de excelência, como a Companhia de Saneamento Básico do
Estado de São Paulo (Sabesp) e Companhia de Saneamento do Paraná
(Sanepar), não serão privatizadas ou prejudicadas, uma vez que o marco
não obriga a contratação de serviços privados. Sustenta ainda que a
única alteração diz respeito à obrigatoriedade de concorrência apenas
após possibilidade de prorrogação de contratos em vigor por até 30 anos
ou ao final de sua vigência.
Regulação da ANA vai substituir regras estaduais ou municipais?
A existência de cerca de 50 agências reguladoras regionais, estaduais
e municipais no país, com processos diferentes de trabalho, torna
necessária a federalização de diretrizes para estimular “a livre
concorrência, a competitividade, a eficiência e a sustentabilidade
econômica”. Por isso, o PL 4.162/19 prevê que o papel da Agência
Nacional de Águas (ANA), autarquia vinculada ao Ministério do
Desenvolvimento Regional, será o de editar normas de referência e
padrões de qualidade para os serviços de água e esgoto, de gestão do
lixo urbano e da drenagem pluvial.
O objetivo é que haja diretrizes gerais claras, que possam ser
compreendidas e acompanhadas por investidores, o que não significa que
as agências locais deixarão de estabelecer normas específicas para as
regiões de sua jurisdição. Rodnei Iazzetta reforça que a ANA não vai
assumir a regulação direta do saneamento, ou seja, as agências já
existentes continuarão a regular as operações das empresas em estados e
municípios. O que muda é que as normas federais servirão de parâmetro
para as empresas públicas e privadas, que terão apoio para formar um
corpo técnico qualificado.
“As empresas terão acesso a recursos federais e até mesmo
financiamentos. Você começa a planejar um serviço que hoje é municipal,
mas agora com amplitude federal. Quando você tem incentivos de aderir a
diretrizes federais, tem um ganho de escala muito grande. Em termos de
parâmetros regulatórios, essa empresa privada sabe o que tem de cumprir
em um município do Sul e outro no Nordeste que ela atende. É um ganho de
eficiência muito grande”, acredita.
A partir de um ambiente de negócio favorável, Iazzetta enxerga uma
luz no fim do túnel para atingir a universalização em menos de 13 anos,
como previsto no Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab).
“Estamos falando de uma série de incentivos, como os blocos de
referência com a junção de mais municípios, ou até mesmo os estados se
organizarem. Em conjunto, é possível fazer uma concessão mais robusta,
com ganho de escala maior e que faz o projeto ficar mais atraente”,
acrescenta.
Municípios pequenos serão esquecidos por não serem rentáveis?
A premissa de que a entrada de empresas privadas no setor de
saneamento vai deixar de fora municípios menores por serem menos
lucrativos é outra narrativa equivocada. Basta observar na nova lei a
possiblidade da formação de blocos de referência, ou seja, vários
municípios podem se unir e elaborar planos estruturais que podem ser
atendidos por uma única empresa. Desse modo, todas as localidades
envolvidas em uma mesma licitação terão os serviços prestados pela
companhia estadual ou privada que tenha garantido o direito de
concessão.
Para Fernando Marcato, mestre em Direito Público e professor da
FGV/SP, essa facilidade de os municípios se organizarem em bloco pode
“gerar ganhos em escala”. “A ideia é que, por exemplo, se faça uma
concessão privada de vários municípios de uma mesma região. Nesse caso,
eu consigo atender mais gente com custos fixos mais baixos. O saneamento
tem essa característica, quanto mais gente você atende, em um sistema
integrado, mais tende a reduzir os custos da prestação de serviços”,
ilustra.
Atualmente, os municípios são impedidos de negociar a concessão de
saneamento em conjunto, o que dificulta a prestação dos serviços em
locais onde há restrições fiscais e orçamentárias. Rodnei Iazzetta
lembra que essa situação é ainda mais grave em cidades menores, que não
contam com uma agência reguladora nem conseguem pagar por um Plano
Municipal de Saneamento Básico – condição obrigatória para que as
prefeituras possam receber recursos federais e aplicá-los em projetos
voltados ao setor.
“O PL incentiva a reunião de municípios em blocos de referência em um
único contrato. Isso resolverá o problema de inúmeros municípios que
são pequenos e que hoje, sozinhos, não atraem a iniciativa privada”,
assinala o especialista da Lobo de Rizzo.
Com parâmetros claros, mecanismos eficientes que facilitam a
ampliação de investimentos e fiscalização atuante, Juliana Smirdele
projeta que todos os brasileiros passem a ter acesso a serviços de
saneamento básico.
“O PL é apenas o primeiro passo. Essa maior competitividade não é
garantia de que vai haver de fato a expansão e melhora do serviço de
saneamento. Para isso, é imprescindível uma regulação adequada e forte,
assim como contratos bem construídos e metas bem definidas. Infelizmente
não é o que observamos hoje em dia”, opina.
“Um estudo feito pela FGV/CERI no fim do ano passado mostra que 55%
dos contratos entre os municípios e companhias estaduais da região
Sudeste não tinham metas bem definidas. Isso é uma realidade no país,
contratos com que não tem metas claras e objetivas. Com o novo marco,
isso pode finalmente mudar”, considera Juliana.
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