Levantamento da Embrapa mostra que saneamento básico ainda é realidade distante para a maior parte dos 30 milhões de moradores do campo; 3,5 milhões ainda não têm banheiro nas residências
O
sítio São João, conhecido como Escola da Floresta, é hoje uma
referência nacional de sustentabilidade ambiental. O sítio fica na
cidade de São Carlos, no interior de São Paulo, e é visitado por pessoas
do Brasil inteiro, que vão até lá para conhecer um pouquinho mais sobre
conservação e preservação da biodiversidade. Mas nem sempre foi assim.
O produtor rural Flávio Marchesin, de 54
anos, conta que herdou do pai a propriedade. Até o ano de 2001, para
que os moradores fizessem as necessidades fisiológicas, o sítio contava
apenas com fossa rudimentar, conhecida também como fossa negra. Essa
fossa é basicamente um buraco por onde são direcionados os dejetos, que
caem diretamente no solo ou no lençol freático, sem qualquer tipo de
tratamento.
“Perto do nosso sítio passa um rio e a
gente capta água desse rio para irrigação da nossa horta e da
psicultura. Então, não tinha sentido a gente poluir esse rio e usar a
água dele para irrigar os produtos que tínhamos no sítio”, lembra
Flávio.
Foi a partir daí, há quase 20 anos, que o
produtor e a família resolveram procurar auxílio da Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa),
que ajudou na implantação da fossa séptica biodigestor. A fossa
séptica, diferentemente da rudimentar, é um tanque vedado e os dejetos
são direcionados e tratados sem contaminar o solo e o lençol freático,
além de evitar a propagação de doenças.
Porém, a realidade atual de Flávio e da
família não é a mesma vivida por milhões de pessoas no meio rural. De
acordo com dados da Embrapa, apenas 28,7% dos moradores dessas áreas
contam com rede pública de esgoto e/ou com fossa séptica.
“Ainda assim, a gente precisa olhar
esses números com muita cautela, porque esses são números
autodeclarados. O recenseador visita a residência, pergunta às pessoas
que moram ali se elas têm a fossa séptica e muitas vezes elas respondem
que sim, mesmo tendo a rudimentar”, alerta o pesquisador Wilson Tadeu
Lopes da Silva, que, há 17 anos, trabalha com o tema na Embrapa
Instrumentação.
Atualmente, cerca de 30 milhões de
pessoas vivem no campo, mas apenas 20% delas usam soluções adequadas
para o tratamento dos dejetos. O levantamento da Embrapa mostra também
que cerca de 3,5 milhões de habitantes do meio rural ainda não possuem
banheiro – isso equivale a 14% da população do campo. “Falta um pouco
desse olhar para a população rural, especialmente das áreas isoladas.
Geralmente, essas pessoas são negligenciadas”, lamenta Wilson.
O que muita gente não sabe, segundo o
pesquisador, é que o saneamento básico que chega às áreas urbanas passa
primeiro pelas áreas rurais. “A água que a gente utiliza na cidade vem
das nascentes que, geralmente, estão presentes na área rural. Então,
preservar mananciais, nascentes e pensar na qualidade do saneamento
rural é também pensar na qualidade do saneamento urbano.”
Novo coronavírus
O saneamento básico se tornou uma preocupação maior ainda com o momento
atual. O Brasil ocupa, hoje, o segundo lugar com o maior número de casos
de covid-19 em todo o planeta, perdendo apenas para os Estados Unidos. A
nação verde e amarela já registra mais de meio milhão de casos
confirmados da doença e quase 30 mil mortes confirmadas.
“Estamos vivendo um momento totalmente
diferente no Brasil e no mundo. E o que isso tem a ver com a falta de
saneamento básico? O Brasil talvez tenha a infraestrutura mais atrasada.
Podemos dizer que a grande solução do esgoto, hoje, é jogá-lo na
natureza que ela cuida”, ironiza o presidente do Instituto Trata Brasil,
Édison Carlos.
Em um país com 209 milhões de
habitantes, metade ainda não possui serviços de tratamento de esgoto.
Segundo informações do Trata Brasil, somente 46% do volume de esgoto
gerado é tratado. Além desse problema, 35 milhões de brasileiros ainda
têm que lidar com a falta de acesso ao abastecimento de água. E a
realidade é ainda mais assustadora para quem vive nas áreas periféricas e
rurais.
“Como é que essas pessoas podem se
higienizar, num momento de pandemia, se elas não têm água?”, questiona
Carlos. “Muitas dessas pessoas usam água de poço, de cacimba, de
cachoeira, de rio. Além de não se higienizar contra o coronavírus, elas
podem adquirir outras doenças que são tradicionalmente transmitidas pelo
esgoto doméstico”, lamenta.
Classificada por ele como a maior
pandemia dos últimos séculos, o novo coronavírus escancara uma realidade
difícil para quem, muitas vezes, é invisibilizado pelo poder público.
“Infelizmente, a falta de saneamento tem a ver com esse momento. Quando
você fala para a população que a principal ação de proteção é o
isolamento e a higiene, especialmente a das mãos, como fazer com quem
não tem água? E milhões de brasileiros não têm acesso a ela”, lembra
Édison Carlos.
Marco legal
No Congresso Nacional, antes do início da pandemia, os parlamentares discutiam o futuro do saneamento por meio do Projeto de Lei 4.162/2019, que institui um novo marco legal. A previsão é que ele volte a ser centro de discussões e que tome forma ainda em junho.
Entre outras regras, o texto determina
que a regulamentação do setor, hoje uma atribuição dos municípios, se
torne responsabilidade do governo federal, por meio da Agência Nacional
de Águas (ANA). Ela ficaria responsável por regular as tarifas cobradas e
estabelecer mecanismos de subsídio para populações de baixa renda.
Para a pesquisadora do Centro de Estudos
em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV/CERI)
Juliana Smiderle, o PL visa desenvolver o ambiente regulatório do país
para reduzir a percepção de risco e atrair investimento para o setor.
“Isso por conta do déficit que a gente
vive”, esclarece. “Os recursos públicos para investimento em saneamento
são cada vez mais escassos. Com isso, há a necessidade de atrair
investimentos privados para o setor”, defende. Juliana acredita que isso
fará com que cresça a competitividade no setor. “Com a competição,
ficará mais fácil chegar ao objetivo, que é a universalização do
serviço.”
Ela destaca que a aprovação do PL é
apenas o primeiro passo para essa competitividade. “Se o projeto for
aprovado, vai permitir que isso aconteça. Porém, não é garantia que
haverá de fato expansão e o aumento na qualidade na prestação dos
serviços. Para que isso aconteça, é imprescindível uma regulação
adequada e forte, contratos bem construídos e com metas bem definidas,
fiscalização. Infelizmente, não é o que observamos hoje em dia”, opina.
O texto prevê, ainda, que os estados
podem definir “microrregiões”, com a criação de “blocos de municípios”,
para atrair o interesse da iniciativa privada. Vale ressaltar,
entretanto, que nenhuma empresa pode deixar de atender, à revelia,
determinado município, sob o risco de ter o contrato de concessão
cancelado. Entre os critérios que poderão ser utilizados, estão o
pertencimento à mesma bacia hidrográfica, vizinhança geográfica ou mesmo
uma combinação entre localidades superavitárias e deficitárias.
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