Isolamento, fome e sede: caminhoneiros e produtores contam o drama de atravessar o trecho paraense da rodovia
A
BR-163 não é só uma rodovia estratégica e estrutural para a malha
viária brasileira. Pela sua peculiaridade em ter demorado tanto para ser
concluída, a estrada é conhecida por abarcar um mar de histórias. As
dificuldades em alcançar o destino de escoamento dos produtos agrícolas,
na região de Santarém (PA), são responsáveis em reproduzir narrativas
de luta e sobrevivência. Há 20 anos, labutando no transporte de cargas
da região, o caminhoneiro Eurico Tadeu sentiu, no corpo, o preço do
descaso do poder público com a estrada.
Em
2014, ele viu um comboio de 15 caminhões travarem a estrada. A queda de
uma ponte e o atolamento de dois veículos deixaram todos sem
comunicação. “Cavamos oito dias para tirar água de beber. Ficamos sem
tomar banho e comíamos o que tinha na mata. Não havia recursos. Até
conseguimos o socorro, ficamos isolado”, contou Eurico, também presidente do Sindicato dos Transportadores Autônomos do Estado do Pará.
A
sensação de isolamento e a perda de contato são comungadas com
produtores e moradores da região. Enfrentar as precariedades da BR-163
exige coragem. É comum que caminhoneiros se neguem a fazer o frete nos
períodos chuvosos intensos. Nesse período, há relatos de 50 a 70
quilômetros de engarrafamento. Nas redes sociais, alguns motoristas
contam detalhes a epopeia. É o caso de Vilson Correia, que andou 25 km
em dois dias.
SOFRIMENTO CONTÍNUO
Eurico
Tadeu, enfatiza que ninguém que ir para Santarém, porque não tem como
chegar ao seu destino. “Só vai quem realmente conhece, porque o
sofrimento é muito grande. Está se perdendo muita coisa nesses 400
quilômetros. O caminhoneiro leva, às vezes, dois ou três dias para fazer
esse percurso, isso se não chover. Isso é custo”, lamenta.
O
caminhoneiro ressalta que os caminhoneiros também sofrem com a falta de
segurança nas estradas, principalmente, porque não há fiscalização.
“Falta, sobretudo, fiscalização. Não temos postos da Polícia Rodoviária
Federal, por exemplo, porque ainda não existe asfalto. Além disso, tem
muita carga errada, circulando livremente.
Presidente
do Movimento Nacional dos Caminhoneiros do Brasil, Gilsemar Stelle
Borges puxa da memória as dificuldades de passar pela BR-163 em tempo de
chuva incessante. “Fiquei de dois a três dias sem água, muitas vezes,
sem comida”.
Recentemente,
o episódio mais dramático da região ocorreu em fevereiro de 2017, no
trecho do 65 km da rodovia, entre os municípios paraenses de Trairão e
Novo Progresso, quando mais de quatro mil caminhões ficaram parados por
cerca de 20 dias por conta de fortes chuvas e atoleiros em uma das
partes ainda não asfaltadas da rodovia.
Na
época, os prejuízos foram estimados em US$ 400 mil por dia - dados da
Associação Brasileira de Óleos Vegetais (Abiove). As filas de caminhões
chegavam a 50 km de extensão. “Paramos por falta de trafegabilidade. O
governo não ofereceu condições, os caminhões ficaram atolados nos dois
sentidos, bloqueando a rodovia. Até que parou a chuva, e o Exército
Brasileiro foi arrastar os caminhões”, pontua Gilsemar.
LUTA CONTRA O TEMPO
Produtor
rural e morador da cidade de Trairão (PR), município às margens da
BR-163, Edvaldo Silva lembra-se do desespero de pegar a estrada em dias
de chuvas. Certa vez, ele precisou socorrer a sua mãe, picada por um
escorpião. Para salvá-la, necessitava cumprir 80 quilômetros da fazenda
até a cidade de Itaituba, com atoleiros enormes no meio do caminho.
Felizmente,
ela conseguiu ser medicada. “Em períodos de chuva, o tráfego de
caminhões cai muito. São décadas de isolamento. Ficávamos constrangidos e
sem esperança de que um dia nós pudéssemos chegar a esse momento de
finalização. De ver energia, de ver a pavimentação das estradas. Enfim,
um futuro melhor, no sentido de educação, de cultura, de desempenho
financeiro”, comemora Edvaldo Silva.
Foram 43 anos de abandono desde a inauguração em 20 de outubro de 1976.
Nessa região de Santarém, a vida se inviabilizou, gerando prejuízos
incalculáveis. “Infelizmente, tudo aqui ficou muito tempo parado. A
gente sofria porque não existia a mínima infraestrutura, nem manutenção
na via. Para se viver por aqui, tem que se virar”, lembra-se Eurico
Tadeu.
“Se
virar”, no linguajar da região, é arriscar-se pela estrada sem o
chamado “chão preto”, expressão dos moradores do local. Segundo dados da
última edição do Anuário Estatístico de Segurança Rodoviária, divulgado
pelo Ministério dos Transportes em 2017, a BR 163 registrou 1.035
acidentes envolvendo caminhões, o 8º maior número entre as rodovias
federais brasileiras.
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